quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Antonio Machado e a Geração de 98 - Por Marco Catalão


A Espanha do final do século XIX, quando Antonio Machado (1875-1939) começou a escrever, estava marcada por um grande atraso econômico e social. Dois terços da população economicamente ativa dedicavam-se à agricultura, em que a ausência de técnicas de trabalho modernas ocasionava uma baixa produtividade. Nas indústrias mais importantes, a defasagem técnica em relação ao restante da Europa era patente. Nas universidades, desconhecia-se praticamente o ensino de técnicas científicas modernas, o que originava a má preparação dos cientistas e dos profissionais. A porcentagem de analfabetismo chegava a quase 80% da população, enquanto 60% dos jovens não estavam escolarizados, e o orçamento militar era dez vezes superior ao da educação.
Com a derrota nas guerras coloniais contra os Estados Unidos e a perda da posse de Cuba, Porto Rico e
Filipinas em 1898, as ilusões de grandeza nacional cultivadas desde a restauração da monarquia, em 1873,
revelaram-se falaciosas. Surgiu então uma série de estudos sobre o “problema da Espanha”, que propunham
soluções em linguagem pragmática e cientificista, quase todas de caráter econômico e educacional. No entanto, dada a importância para a intelectualidade espanhola da relação entre história, identidade do povo e
política, freqüentemente esses tratados propunham idéias para a “regeneração nacional” baseadas numa
interpretação da história nacional em que se condenava a política econômica dos Habsburgo e se exaltava uma Idade Média mítica e “castiça”.
Paralelamente ao movimento regeneracionista, aos poucos cristaliza-se um grupo de intelectuais que, céticos
em relação aos resultados do liberalismo do século XIX e à eficácia das instituições políticas, buscam soluções para o “problema da Espanha” não em ações concretas, mas em zonas do pensamento e atividades alheias à política. Ángel Ganivet (1865-1898), em sua tese España filosófica contemporánea, de 1889 (cujas idéias serão ampliadas no Idearium español, de 1896), não relaciona a crise nacional a um problema político, econômico ou social, mas remete-a a um problema essencialmente espiritual. “Por essa razão, [Ganivet] ignora deliberadamente medidas como a reforma agrária, a industrialização, ou a redistribuição do poder político, que poderiam ajudar a enfrentar os problemas de um modo concreto e prático. Em lugar disso, localiza as raízes do problema na mentalidade nacional”.
Miguel de Unamuno (1864-1936), a partir do ensaio intitulado En torno al casticismo, de 1895, afasta-se do marxismo e passa a considerar a compreensão do “caráter nacional” espanhol como essencial para a
regeneração econômica e social do país. Para ele, essa compreensão deveria fundamentar-se não na história
oficial dos “grandes acontecimentos”, dos livros e monumentos, mas no que ele denominou a intra-história, a
história potencial nunca cumprida do povo espanhol, revelada através da paisagem física, de algumas obras de arte e da vida cotidiana das classes mais baixas, supostamente alheias às transformações temporais.
Quando, em dezembro de 1901, três jovens escritores, Azorín (José Martínez Ruiz, 1873-1967), Pío Baroja (1872-1956) e Ramiro de Maeztu (1874-1936), publicam seu manifesto sobre a regeneração nacional, em que advogam pela educação obrigatória, pelo crédito agrícola e pela legalização do divórcio, Unamuno nega-se a unir-se a eles, alegando que só propunham reformas práticas, desconsiderando a necessidade de transformar a mentalidade do povo. Pouco tempo depois, influenciados por Unamuno, Baroja afirmaria que nada se conseguiria sem um novo ideal, e Azorín defenderia a primazia das mudanças individuais sobre as transformações políticas.
Unido pelo ideal comum da regeneração da Espanha a partir da descoberta de sua “verdadeira identidade”,
surge então o primeiro grupo intelectual ativo e influente culturalmente nos rumos do país, “a primeira geração espanhola que teve uma consciência clara de seu papel diretivo na vanguarda política e social”: a “geração de 98”, assim batizada por Azorín em 1913, tomando como base o ano da perda de Cuba — ainda que, como se viu acima, algumas de suas idéias essenciais remontem a um período anterior.
De acordo com as concepções de Unamuno e Ganivet, a busca pela identidade espanhola deveria fundamentarse no estabelecimento de “um núcleo central e imperecedouro da tradição nacional, uma base firme que permitisse examinar o passado e fazer recomendações face ao futuro: um ‘núcleo castiço’, ‘uma força dominante e central’”. Para isso, os escritores da geração de 98 buscaram “a continuidade nacional” (frase de Baroja) na paisagem física (deve-se lembrar a forte influência das concepções deterministas na época), na arte (com particular destaque para o Don Quijote, cujo terceiro centenário se comemorou em 1905) e na existência anônima e humilde do povo à margem da história oficial: “O que não se historiava, nem se romanceava, nem se cantava na poesia, é o que a geração de 98 quer historiar, romancear e cantar”.
O primeiro desses imperativos, a necessidade de conhecer a terra espanhola, foi uma vertente muito fecunda
na obra desses escritores, que, através do conhecimento adquirido nas várias excursões (solitárias ou em
grupo) feitas pelo território nacional, transformaram radicalmente o tratamento da paisagem na literatura
espanhola: esta deixou de ser simples cenário decorativo para tornar-se elemento revelador e simbólico. Livros fundamentais do grupo, como Camino de perfección (Baroja, 1902), La ruta de Don Quijote (Azorín, 1905) e Campos de Castilla (Machado, 1912), estão centrados numa descrição que é ao mesmo tempo interpretação da paisagem nacional.
Deve-se ressaltar, assim, que a meta de uma observação objetiva visando a um melhor conhecimento da
realidade do país não evitou que os elementos concretos fossem muitas vezes ofuscados ou distorcidos pelas concepções teóricas dos escritores. Como ressaltou Moreno Hernández, Castela, a paisagem por excelência da geração de 98, “é tanto um espaço geográfico segundo as coordenadas deterministas, como um lugar retórico, uma reserva de fragmentos e estereótipos transferíveis de um discurso, ou gênero, a outro, e de um autor a outro”.
Como centro físico e espiritual das preocupações do grupo, a região de Castela surgia como símbolo da
autenticidade espanhola anterior aos reis católicos: “Se todos os escritores de 98 cantam literariamente a
Castela, ademais de cantar sua terra natal; se todos encontram em sua dramática aspereza certa delicadeza
última e quintessenciada, e olham-na com íntima e fina nostalgia, por trás de seu sentimento opera o mito
histórico de uma Castela espanholamente pura em sua origem remota”.
Essa mesma idéia de “pureza medieval” levará a uma alteração no cânone literário, com uma revalorização dos “escritores primitivos”; assim, “à tradição de Calderón oporão a tradição de Berceo e de Jorge Manrique; à épica moderna, o Romanceiro; a Francisco de Rojas, o Arcipreste de Hita”. Nas artes plásticas, serão louvados aqueles que souberam se ater à “realidade cotidiana” e à paisagem espanhola: Velásquez e, sobretudo, Goya e El Greco. Don Quixote (mais do que Cervantes) será considerado um símbolo da espiritualidade medieval resistente ao materialismo moderno.
Se as inquietações próprias dos escritores de sua geração com respeito à Espanha não permaneceram alheias a Antonio Machado durante o primeiro decênio do século (lembremos que ele colaborava nas mesmas revistas em que estes escreviam; que já em 1903 freqüentava ocasionalmente a tertúlia de Baroja e Azorín no Nuevo Café de Levante, em Madri; que participou, em 1905, junto com esses dois escritores e mais Unamuno e Maeztu, do protesto coletivo contra a concessão do prêmio Nobel a Echegarray), a visão do grupo de 98 só se incorporou a seus poemas a partir de 1907, depois de sua mudança para Soria.
Para que se entendam os motivos por que Machado tardou a aderir ao grupo, deve-se levar em conta que,
antes do surgimento das obras dos escritores de 98, no período em que ele começou a escrever, era muito
grande na Espanha o prestígio de um outro movimento literário, o modernismo. Este vocábulo tem uma
acepção particular na história da literatura espanhola, referindo-se ao movimento surgido na América Latina nos anos 80, primeiro em prosa, e depois em verso, sob a liderança do escritor e patriota cubano José Martí (1852- 1895) e do poeta nicaragüense Rubén Darío (1867-1916), com raízes no simbolismo e no parnasianismo franceses. “Os modernistas dedicaram-se a um esteticismo consciente, à Arte como supremo absoluto, à Beleza como ideal máximo, e à radical renovação formal da prosa e da poesia como meios para sua consecução.
Exaltaram a imaginação criativa e a fantasia como opostas à observação realista e aos cânones aceitos pela
literatura burguesa do século XIX.”
O modernismo exerceu forte influência na poesia espanhola do período, e Machado, como Ramón Jiménez e Valle-Inclán, formou-se escritor dentro de sua estética. Se a refundição, em 1907, de seu primeiro livro,
Soledades, de 1903, tem por finalidade não apenas retirar os poemas piores, mas também eliminar, sobretudo em seu aspecto formal, as sobrevivências modernistas (tais como os elementos mais descritivos e os efeitos de sonoridade), elas se manifestam de forma evidente na imagem recorrente dos parques abandonados, na concepção do poeta como vidente e da poesia como operação alquímica, e em alguns traços formais que persistirão inclusive em Campos de Castilla, de 1912.
Na verdade, a divisão da literatura espanhola do início do século XX em dois grupos opostos — modernistas, preocupados sobretudo com a renovação formal, e geração de 98, atenta sobretudo ao “problema da Espanha” — não é unanimemente aceita pela crítica atual. Antonio Ramos-Gascón, estudando a colaboração dos escritores para as revistas em que estes iniciaram suas trajetórias literárias, chega à conclusão de que “sem necessidade de recorrer às formulações teóricas expostas pela ‘gente nova’ ao final do século XIX, o estudo detido do comportamento literário deste grupo revela-nos já a inexistência de um enfrentamento entre ‘modernismo’ e ‘98’. Martínez Ruíz, ‘anarquista literário’, traduz Kropotkin, mas também Maeterlink; Baroja, ao mesmo tempo em que nos descreve ‘a luta pela vida’ na Madri da época, estuda na Revista Nueva a coloração dos sons; Benavente, refinado esteticista, publica em Germinal esquetes dramáticos de clara tendência anarquista; Juan Ramón Jiménez, como assinalamos, alterna os poemas de Alma de violeta [sic] com poesias sociais; Federico Urales, conhecido anarquista, na hora de fazer literatura segue as diretrizes do esteticismo d’annunziano; Manuel Machado, ao regressar de Paris, explica-nos os fundamentos político-sociais da reação antimodernista; Maeztu, ideólogo ‘noventa-e-oitista’, combina o parnasiano e o social em sua poesia de juventude; Dicenta, representante do ‘naturalismo’ no teatro, identifica sua luta com a do esteticismo italiano, etc. Ou seja, nos primeiros anos do movimento ‘novo’, ambas as correntes não se contrapõem; pelo contrário, inclusive se complementam em certo sentido”.
Por outro lado, a perspectiva exclusivamente estética atribuída por parte da crítica ao modernismo como forma de diferenciação em relação ao grupo de 98 só é válida durante o período inicial do movimento. O “segundo modernismo” hispânico tem como marca essencial a descoberta da linguagem e das paisagens cotidianas: “o modernismo havia povoado o mar de tritões e sereias, e os novos poetas viajam em barcos comerciais e desembarcam, não em Citéria, mas em Liverpool; os poemas já não são cantos às cosmópolis passadas ou presentes, mas descrições bem mais amargas e reticentes de bairros de classe média; o campo não é a selva presentes, mas descrições bem mais amargas e reticentes de bairros de classe média; o campo não é a selva nem o deserto, mas o povo dos subúrbios”.
De qualquer forma, a preocupação ética e social dos escritores de 98 parece ter sido o fator determinante para que Machado se aproximasse do grupo. Analisando seus escritos em prosa (correspondência, ensaios, artigos publicados em revistas) nos primeiros anos do século, notamos uma crescente preocupação com a coletividade espanhola e, concomitantemente, uma forte aspiração por intervir sobre a realidade nacional. O ano de 1903 marca uma transição na concepção machadiana sobre o papel do artista, como se nota no seguinte fragmento de uma carta a Unamuno: “O artista deve amar a vida e odiar a arte, o contrário do que pensei até aqui”.
Em 1904, numa resenha do livro Arias Tristes, de Juan Ramón Jiménez, em meio a vários elogios ao poeta,
Machado, provavelmente aludindo a uma atitude pela qual se vira tentado, pede-lhe que não se evada da vida exterior “para forjar quimericamente uma vida melhor em que gozar a contemplação de si mesmo”. Embora reconheça que “uma poesia que aspire a comover a todos deve ser muito íntima”, e que “o mais profundo é o mais universal”, ressalva que “enquanto nossa alma não despertar para elevar-se, será inútil que nos aprofundemos em nós mesmos”.
Numa carta escrita a Unamuno no mesmo ano, Machado volta a manifestar seu repúdio ao solipsismo: “todos os nossos esforços devem tender em direção à luz, em direção à consciência. (...) É verdade, deve-se sonhar desperto. Não devemos criar um mundo à parte em que gozar fantástica e egoisticamente da contemplação de nós mesmos; não devemos fugir da vida para forjar-nos uma vida melhor, que seja estéril para os demais”.
O desejo de uma poesia objetiva, que não fosse mais, como as Soledades e Galerías anteriores, contemplação
de si mesmo e projeção de seu espírito sobre a paisagem, encontrou um elemento decisivo em 1907, com sua mudança para Soria: o contato com a paisagem rural de Castela. Num artigo publicado em 1908 (“Nosso patriotismo e a Marcha de Cádiz”), escrito alguns dias depois de sua chegada a Soria, Machado torna clara a sua disposição de participar na construção coletiva de uma nova identidade nacional: “Sabemos que a pátria não é uma propriedade herdada de nossos avós, boa apenas para ser defendida na hora da invasão estrangeira. Sabemos que a pátria é algo que se faz constantemente e se conserva só através da cultura e do trabalho. O povo que descuida dela ou a abandona perde-a, ainda que saiba morrer. Sabemos que não é pátria o solo que se pisa, mas o que se lavra; que não basta viver sobre ele, mas sim para ele: que ali onde não existe marca do esforço humano não há pátria, nem sequer região, apenas uma terra estéril, que tanto pode ser nossa como dos abutres ou das águias que sobre ela voam”.
Há, por fim, um outro fator que certamente contribuiu para que Machado se aproximasse dos escritores da
geração de 98: o fato de ele ter estudado, dos oito aos quatorze anos, na Institución Libre de Enseñanza.
Fundada em 1876, como reação a um decreto do ano anterior que suprimia a liberdade de cátedra, proibindo nas universidades o ensino de temas contrários ao dogma católico ou ataques diretos ou indiretos à monarquia, a Institución era um centro de ensino liberal que se diferenciava por implantar práticas que seus criadores desejariam ver arraigadas no conjunto da sociedade — tolerância, laicismo, espírito democrático, empenho científico.
Além do claro repúdio à atividade política por parte de seus criadores, para quem “era firme a convicção de que toda tentativa de reformar a sociedade ‘a partir de cima’, ou seja, recorrendo às medidas executivas da
política, seria por fim inútil, por ter que trabalhar com uma massa popular em grande parte indigente e
ignorante”, a Institución apresentava vários outros pontos de contato com a geração de 98: a crítica à
realidade social e ao autoritarismo; a admiração pela natureza, com a promoção de freqüentes excursões por Castela; a valorização do saber popular; a exaltação do trabalho como atividade positiva e fecunda.
Assim, a publicação de Campos de Castilla, em 1912, marca não simplesmente a adesão definitiva de
Machado à estética, e à indissociável ética, da geração de 98, mas também a culminação de um longo
processo de transformação iniciado já na primeira refundição de Soledades, em 1907, e cujas raízes se
estendem até sua infância, como aluno da Institución Libre de Enseñanza e membro de uma família de
eminentes folcloristas.
Como já se adiantou acima, esse processo não suprime completamente o influxo modernista na obra
machadiana; tampouco impede o poeta de abrir-se a inspirações alheias à geração, como o sentimento de
temporalidade bergsoniano. A simples relação de nomes presentes na seção Elogios já torna clara a
complexidade da inspiração de Machado: ao lado de poemas dedicados aos “mestres” Unamuno e Azorín,
podem-se ler outros escritos para Rubén Darío (também denominado “mestre”), Juan Ramón Jiménez e Valle- Inclán, em que um tom nitidamente modernista, como notou Sesé, “contrasta com a austeridade sombria das composições de inspiração castelhana e é uma brilhante prova da outra face do gênio poético de Machado”.
Outro elemento que torna mais complexa sua adesão à geração de 98 é a crescente identificação com a terra de Soria: se em A orillas del Duero, de 1910, Machado traz em sua visão da paisagem uma série de imagens que aludem ao passado guerreiro castelhano, com críticas à decadência nacional e referências diretas ao Cid e à época dos “régios galeões” carregados de prata e ouro, nos Campos de Soria, de 1913, a experiência e os sentimentos pessoais predominam sobre a retórica geracional. No primeiro poema, Castela é ainda a “terra triste e nobre”, a mesma de Azorín e Baroja; no segundo, Machado indaga se os campos sorianos já não triste e nobre”, a mesma de Azorín e Baroja; no segundo, Machado indaga se os campos sorianos já não estavam no fundo de sua alma.
Assim, embora Campos de Castilla nasça do propósito de interpretar e compreender a paisagem física e humana de Castela, relacionando-a ao passado nacional e a um hipotético futuro esperançoso, as composições de maior intensidade e beleza são aquelas em que esse propósito é superado pela vivência direta da paisagem, como A un olmo seco, Campos de Soria e A José María Palacio, cujos temas são “a primavera, o tempo, a superação da morte individual, a renovação dos seres”  — temas recorrentes na poesia anterior de Machado, mostrando que há mais continuidade do que ruptura na transição de 1907 para 1912.
Nesses poemas, como assinala Sánchez Barbudo, há muito pouco do grupo de 98: a visão da paisagem é
carregada de amor, restando pouquíssimo espaço para a crítica. “Ainda que aluda (...) à Soria ‘mística e
guerreira’, o que importa agora, o que principalmente expressa (...) é o arraigado amor que sente por essa
terra”. Significativamente, a crítica social ganhará mais força nos poemas escritos depois de sua mudança
para a Andaluzia, e se referirá não mais aos camponeses, mas aos señoritos que os exploram.
Não obstante, há várias características que corroboram o papel de Machado como “o representante exclusivamente lírico da Geração de 98”: a busca da realidade espanhola não na história oficial, mas nos
fatos cotidianos e nas personagens marginais; a interpretação do “problema da Espanha” como uma crise
espiritual; o ceticismo radical com relação aos dogmas da ortodoxia católica; a valorização de uma mítica
Castela primitiva e medieval, exaltada em seu aspecto severo e guerreiro; a decorrente preferência pela
simplicidade e autenticidade medievais de Jorge Manrique e do Romanceiro; a concepção da atividade literária como um método de investigar a situação existencial do homem, mais do que simples expressão da beleza; a crítica violenta à realidade espanhola presente e a esperança no futuro; a observação minuciosa da paisagem castelhana.
A posterior inclinação de Machado para as indagações filosóficas não fez com que se suprimissem essas
características: em suas notas sobre poesia, Juan de Mairena condena a artificialidade barroca e lhe contrapõe a inspiração concreta de Manrique e os versos carregados de temporalidade dos romances; o ceticismo com relação a todos os dogmas agudiza-se a ponto de tornar-se um método de investigação; o mandamento de Unamuno segundo o qual “para ensinar ao povo deve-se aprender primeiro com ele” é glosado repetidas vezes por Mairena; a crítica social persiste, alternando com momentos cada vez mais raros de esperanças no futuro.
Assim, a relação entre Machado e a geração de 98 só pode ser compreendida de forma cabal se atentarmos para a diversidade e complexidade de sua inspiração, bem como para a unidade e coerência de suas aspirações artísticas e morais ao longo de toda a sua trajetória literária. Uma leitura excessivamente unívoca, que procurasse filiá-lo a um ou outro grupo de escritores, enfatizando semelhanças e ocultando divergências, inevitavelmente falsearia a riqueza e a amplitude da poesia machadiana.

 - Marco Catalão

Nenhum comentário:

Postar um comentário