sexta-feira, 26 de outubro de 2012

RETRATO


Minha infância: memórias de um pátio de Sevilha,
e de um horto claro onde madura o limoeiro;
juventude, vinte anos em terras de Castilha;
a minha história quero esquecer por inteiro.
Mañara, nem Bradomín hei sido
— já conheceis meu torpe alinho indumentário —
mas recebi a flecha que me apontou Cupido,
e amei quanto elas possam ter de hospitalário.
Tenho nas veias gotas de estirpe jacobina,
mas o meu verso brota de manancial sereno;
e, mais que o homem usual que sabe sua doutrina,
eu sou um homem bom, um homem sem veneno.
Adoro a formosura, e na moderna estética
cortei as velhas rosas do jardim de Ronsard;
mas não amo os enfeites da moderna cosmética,
nem sou uma ave dessas do novo gay-trinar.
Eu desdenho as romanças desses tenores pecos
e dos grilos o coro a cantar ao luar.
Procuro distinguir entre as vozes e os ecos,
e entre as vozes só escuto a que prefiro amar.
Sou clássico ou romântico? Não sei. Deixar quisera
meu verso como deixa o capitão sua espada;
famosa pela mão viril que ao alto a erguera,
não pelo douto ofício do forjador prezada.
Dialogo com o homem que sempre vai comigo
— quem fala a sós, espera falar a Deus um dia —
meu solilóquio é prática com este bom amigo
que ensinou-me o segredo de sua filantropia.
Enfim, nada vos devo; deveis-me o que hei escrito.
A meu trabalho acudo, com meu dinheiro pago
a roupa que me cobre e a mansão que habito,
o pão que me alimenta e o leito onde me apago.
E quando chegue o dia da última viagem,
e esteja de partida a nau sem retornar,
me encontrareis a bordo ligeiro de equipagem,
quase desnudo, nu como os filhos do mar.

António Machado
Tradução de Fernando Mendes Vianna

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